sábado, 13 de outubro de 2012

Rodinhas duradouras

 Para quem gosta de história essa sem dúvida é uma boa leitura. Este texto conta um pouco mais sobre a  trajetória do skate e como se tornou um esporte perseguido pelas "autoridades" brasileiras desde 1975 até os dias de hoje. Este texto foi escrito pelo historiador Leonardo Brandão e nos foi enviado pelo leitor e amigo Marcelo Buteri.



 “Surfinho”. Quando começou a ser praticado no Brasil, nos anos 1960, era assim que o skate também era conhecido. Criado na Califórnia, no fim do século XIX, como um novo brinquedo, quando o invento chegou por aqui ainda não havia o entendimento que se tem hoje do skatismo: um dos esportes radicais que mais atraem jovens de todo o mundo e que movimenta uma indústria milionária ligada à moda e ao comportamento juvenis.

Sua transposição mais efetiva para o mundo dos esportes só ocorreu após 1972, quando o engenheiro químico norte-americano Frank Nashworthy introduziu o poliuretano na fabricação das rodinhas do skate, tornando-as mais aderentes e capazes de alcançar velocidades incríveis. Antes, as rodas eram feitas de argila, ferro ou borracha. Além disso, alguns jovens californianos começaram a utilizar nesta prática os mesmos movimentos de corpo que faziam para pegar ondas no mar com suas pranchas de surfe. Assim, da união entre tecnologia e movimentos do surfe, o skate começou a ser visto como um esporte alternativo, conquistando muitos adeptos durante a segunda metade da década de 1970, inclusive no Brasil.


Embora tenha sido praticado em muitas cidades do país, na cidade de São Paulo ele se destaca por uma série de problemas relacionados ao seu uso no espaço urbano. De acordo com alguns depoimentos e reportagens em revistas existentes na época, a Rua Queiroz Guimarães, no bairro do Morumbi, foi um dos primeiros redutos desses jovens “radicais”. João Bruno Leonardo Júnior, mais conhecido como Bruno “Brown”, que fez parte dessas primeiras gerações de skatistas paulistanos, relata que começou nesta atividade em 1973, recordando que morava na Alameda Casa Branca, nos Jardins, tendo se iniciado no esporte por influência de um vizinho.



Em 1974, os skatistas começaram a procurar ladeiras com um bom asfalto. Foi assim que chegaram à Rua Queiroz Guimarães, que tinha o apelido de “tapetão” entre os praticantes do esporte. De lá eles desciam deslizando até o cruzamento com a Rua Francisco Morato. Mas logo começaram a ocorrer acidentes, tombos com graves consequências e a aglomeração de muitos jovens num mesmo local. Esses fatos contribuiram para provocar as primeiras das muitas coibições que esta atividade ainda teria em sua história. Após ter “feito a cabeça” de muitos jovens, o skate foi proibido na cidade em 1975. Nas palavras de Bruno “Brown”, “proibiram porque era muita gente andando, era tipo incontrolável. Deu muito acidente, morreu gente, o skate era muito pequeno... A Rua Queiroz Guimarães virou um centro, e os caras mandavam polícia lá direto. Porque o skate foi proibido mesmo. Saiu até no jornal, saiu no Estado de S. Paulo em 1975, nunca mais esqueci, a chamada era assim: ‘Skate: o esporte assassino proibido’. Aí teve essa confusão toda e fizeram a rua do lazer, que era a circular do bosque no Morumbi, e sábado e domingo colocavam cordas no início e no fim, e aí virou a rua do skate. E a gente andava lá”.

Diante desses acontecimentos, o jornalista Luiz Carlos Azevedo, em reportagem publicada na revista Manchete no dia 25 de outubro de 1975, descreveu as fortes repressões que os skatistas começaram a sofrer por praticarem um “esporte proibido”, destacando um episódio em que os praticantes “foram cercados por policiais armados de metralhadoras”. De acordo com a reportagem, no dia 21 de setembro de 1975, “soldados da PM cercaram, na Rua Queiroz Guimarães, no Morumbi, mais de 100 skatistas – entre rapazes e garotas – sob a mira de metralhadoras”. No relato de pessoas envolvidas no evento encontram-se frases como “um deles me apontava um revólver calibre 38, engatilhado, e o outro uma metralhadora, calibre 45, pronta para disparo”.




Com o surgimento das ruas de lazer e depois das pistas de skate, como a Wave Park, inaugurada no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, em 1977, a prática começou a ser mais aceita socialmente, o que resultou na organização de campeonatos e em diversos textos em publicações voltadas para a juventude, como a revista Geração Pop, da Editora Abril, publicada entre novembro de 1972 e agosto de 1979.


Em meados da década de 1980, um novo episódio envolvendo a proibição da prática do skate voltou a ser manchete nos jornais da cidade. Diferentemente dos anos 1970 – quando a prática ainda exibia muito do visual e das técnicas que vinham do surfe –, a década de 1980 trouxe para esse universo uma série de outros elementos. Entre as novidades estavam a influência da cultura punk e o desenvolvimento do streetskate, modalidade na qual os esportistas passavam a interagir com diversos elementos da arquitetura urbana, como corrimãos, escadas, guias e paredes. Para se ter uma ideia da revolução ocorrida na época com esta prática, o skatista Fábio Bolota relembra que a roupagem do punk-rock “se incrustava nos praticantes de todo o mundo. No Brasil não foi diferente. Calça descolorida e rasgada, com a camiseta da banda preferida e um bracelete de pontas. Skate or Die! (Skate ou morte!) ou qualquer frase de efeito parecida estavam ecoando em cada quarteirão. Marcando muito bem essa atitude, o 2º Campeonato Brasileiro de Guaratinguetá foi um desfile de punks e simpatizantes. A cidade foi invadida por alfinetes e penteados que iam do moicano ao espigado ou pintado. Essa atitude começou a incomodar os moradores da pacata cidade, e logo depois eles entraram em guerra com os skatistas”.


Junto com o visual que vinha da cultura punk, a prática na rua – com skatistas pulando escadas e invertendo o sentido original dado pelos urbanistas aos espaços – começou a incomodar os transeuntes, e no caso de São Paulo, seu prefeito na época, o já popular Jânio Quadros. Em 1988, Jânio Quadros decidiu proibir definitivamente a prática do skate em São Paulo. O jornal Folha de S. Paulo, que cobriu passeatas e protestos de muitos praticantes do esporte, publicava opiniões contrárias à medida de Jânio, vista por muitos como conservadora, repressora, e que impedia o direito de ir e vir.


Cartas que chegavam às redações das publicações especializadas da época noticiavam o abuso das autoridades contra os skatistas e a repressão a esta prática esportiva. A revista Yeah!, de circulação nacional, chegou a adotar o slogan “Skate não é crime”. Diferentemente dessa medida conservadora de Jânio Quadros, sua sucessora na prefeitura de São Paulo, Luiza Erundina, assumiu uma postura mais progressista e prometeu legalizar novamente a atividade. Ela chegou a posar para fotos em cima de pranchas de skate, como pôde ser vista no Jornal da Tarde em 1990.



De lá pra cá, muita coisa mudou. Em 1995, por exemplo, por meio de um projeto de lei apresentado pelo deputado estadual Alberto Hiar, foi criado o Dia do Skate, comemorado em 3 de agosto. Mais recentemente, durante a gestão de Marta Suplicy como prefeita da cidade de São Paulo (2000-2004), foram construídas mais de 60 pistas públicas de skate dentro do projeto de revitalização de praças “centros de bairro” e nos centros educacionais unificados, conhecidos como CEUs.

Embora a prática de rua ainda exista e seja forte dentro dessa cultura, ela perde espaço na grande mídia para outras modalidades do skate que apresentam maior apelo visual, disciplina e alcance publicitário, como o que é praticado em pistas com rampas verticais, chamadas de half-pipe, e que podem ser representadas pela letra “U”. Televisionado como um esporte radical e contando com grande número de praticantes e simpatizantes, o skate chega ao século XXI apontado por algumas pesquisas como o segundo esporte mais praticado no país, atrás somente do futebol. Na edição de 2008 do campeonato de esportes radicais X-Games, que foi realizada em São Paulo, um público de mais de 40 mil espectadores assistiu às competições, dando ainda mais destaque ao skatismo enquanto uma cultura juvenil em forte ascensão na contemporaneidade.



Estudar o reconhecimento desta prática como esporte ou mesmo analisar sua criação como uma cultura jovem é avançar nos domínios ainda pouco explorados da história dos esportes radicais no Brasil.

LEONARDO BRANDÃO é historiador e autor da dissertação “Corpos deslizantes, corpos desviantes: a prática do skate e suas representações no espaço urbano (1972-1989)” (UFGD, 2007).


Saiba Mais - Bibliografia

FORTES, Rafael. “Os anos 1980, a juventude e os esportes radicais”. In: Mary Del Priore; Victor Andrade de Melo (orgs.). História do esporte no Brasil: do Império aos dias atuais. São Paulo: Editora da Unesp, 2009.

POCIELLO, Christian. “Os desafios da leveza: as práticas corporais em mutação”. In: Denise Bernuzzi de Sant’Anna (org.). Políticas do corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.

BRITTO, Eduardo (org.) A Onda Dura: três décadas de skate no Brasil. São Paulo: Parada Inglesa, 2001.

Saiba Mais - Filme

“Dogtown and Z-boys: onde tudo começou”, de Stacy Peralta, 2001.
“Os reis de Dogtown”, de Catherine Hardwicke, 2005.
“Grito da rua: o vídeo”, de Davisom Brasileiro e Eduardo Dardenne, 1988.